O momento especialmente desafiador enfrentado pelo Brasil na área de energia, tanto em termos de impacto como em abrangência, talvez só encontre paralelo quando do lançamento da Medida Provisória 579. Ou mesmo por ocasião do histórico racionamento de energia verificado em 2001.
No primeiro caso, em setembro de 2012, motivada por razões técnicas e políticas – em especial -, houve quase que uma minirreforma do setor elétrico. Um período lembrado, com frequência, pelas consequências adversas resultantes. Renovação induzida de concessões, redução arbitrária de tarifas, endividamento de empresas e insegurança jurídica foram algumas delas.
No segundo caso, decorrente de um cenário hídrico devastador, que desembocou em prejuízos bilionários à economia, a introdução expressa de práticas e regras, até então inéditas, trouxe mobilização nacional e muito aprendizado.
Tudo em meio a um ecossistema muito tradicional que ainda começava experimentar transformações profundas. Muitas delas trazidas por medidas de desverticalização do setor elétrico, acompanhadas da privatização de grandes empresas estatais, entre outros fatores inspirados por uma nova ordem economia mundial.
Hoje, bastante pressionada por demandas do mercado, a atual gestão federal se vê provocada por vetores simultâneos interdependentes e que demandam decisões urgentes e muito bem articuladas, devido à sua alta complexidade.
Avanços tecnológicos – como a advento da Inteligência Artificial -, matriz energética em acelerada diversificação, rígidos compromissos climáticos, fortes cobranças externas, mercado livre em expansão e empoderamento do consumidor, são apenas alguns dos drivers que precisam ser estudados e solucionados de uma forma holística e em curto espaço do tempo, para que o Brasil consiga, finalmente, alcançar o patamar de protagonista global, condição essa tão profetizada por especialistas, entidades e instituições financeiras internacionais.
Mercado livre X tarifas
Começando pela comercialização de energia, se de um lado há um clima de efervescência, com forte otimismo impulsionando os negócios envolvendo o processo de migração de uma nova leva de consumidores para o ambiente de livre contratação, por outro há incertezas no horizonte que preocupam os agentes.
A liberação do Grupo A trouxe uma dinâmica que injeta vitalidade e competição pela busca de clientes, movimentando também, por consequência, investimentos em geração de energia. Ao mesmo tempo, contudo, o Poder Executivo emite alguns sinais ambíguos.
O Ministério de Minas e Energia garante apoiar o segmento, mas, em paralelo, avalia que a expansão do mercado estaria trazendo prejuízos aos consumidores do ambiente cativo, em razão de uma alegada herança de encargos setoriais, com impactos negativos na modicidade tarifária.
Despertou forte preocupação, a propósito, a anunciada reestruturação da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). A governança da organização passará, em breve, a contar em sua cúpula, com um presença maior de representantes do governo federal. A repercussão dessa linha de perfil intervencionista já pode ser nitidamente percebida nos recentes episódios envolvendo a Petrobras e Vale. Lembrando ainda que cabe à CCEE fazer o cálculo diário do PLD (Preço da Liquidação das Diferenças), valor que baliza as negociações no mercado livre.
Esse indicador, segundo especialistas, também precisa passar por mais aperfeiçoamentos. A ideia é que possa refletir mais fielmente as condições operacionais efetivas de oferta e demanda, sem flutuações bruscas. Em algumas dessas ocasiões houve momentos de forte tensão, com registro de casos de inadimplências, embora raros. O maior rigor adotado pela CCEE nos procedimentos de fiscalização evitou danos maiores e riscos sistêmico.
As tarifas de energia são reconhecidamente altas no Brasil e a diretoria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a quem cabe, aliás, providências complementares quanto ao processo de reestruturação da CCEE, é quem mais defende uma solução para essa questão.
O órgão regulador, entre outros pontos, coloca na mesa o problema do acúmulo de subsídios, que respondem por mais de R$ 30 bilhões em custos anuais aos bolsos dos consumidores brasileiros. Ou seja, uma componente de enorme peso e que não se pode imputar à abertura do mercado livre. Para se ter uma ideia, o reajuste tarifário da concessionária que atende o Amapá, que deveria entrar em vigo no final do ano passado, está suspenso até o momento, pois carrega um índice de aumento superior a 40%.
A rediscussão entre Brasil e Paraguai e torno da tarifa de geração da Itaipu Binacional vem adicionar mais complexidade a esse cenário, desta vez de natureza política, e que vai precisar ser resolvido ao longo de 2024. Quitada a dívida referente à construção da hidrelétrica, o governo brasileiro defende um desconto representativo no valor atual, proposta essa que vem sendo recusada sistematicamente pelo governo do país vizinho, que se julga no direito de obter uma receita maior da sua parte no ativo.
Protagonismo legislativo
O imbróglio da escalada dos subsídios, por sua vez, está ligado a um fenômeno que não é novo, mas que vem tomando proporções muito significativas nos últimos anos. O Executivo tem dificuldade de negociar suas pautas junto ao Congresso Nacional e também no TCU (Tribunal de Contas da União).
Parlamentares, não raro, avançam em responsabilidades que, historicamente, são da alçada do Poder Concedente ou das agências reguladoras. Além de gerar um clima de maior sensibilidade, o resultado pode ser notado em recentes Projetos de Lei aprovados, que confrontam as bases do modelo do setor elétrico, introduzindo distorções em seu funcionamento.
A extensão de incentivos à expansão de projetos de geração renovável, segmento que já dispõe de vitalidade suficiente para dispensar apoios extras, é um exemplo. Houve uma recente corrida de investidores para registrar empreendimentos na Aneel. Isso obrigou a agência a recorrer providências mitigadoras para descontinuar vários deles. Simplesmente não havia “vagas” suficientes para acomodá-los na rede de transmissão que, em outro desvio do que seria lógico, obriga o planejamento a se desdobrar para poder atender à demanda e não o inverso.
Outro hábito que vem despertando a atenção no Legislativo é a usual introdução de itens totalmente alheios – os chamados “jabutis” – aos escopos centrais dos Projetos de Lei, algo que igualmente contribui para trazer mais custos aos consumidores e dificuldades adicionais à organização e operação do setor elétrico.
A obrigação de construção de capacidade termelétrica movida a gás natural em matéria que trata originalmente da política para construção de usinas eólicas em alto mar (offshore) ganhou notoriedade na mídia e foi condenada por várias entidades.
Excedentes de geração
A eólica offshore é mais um atributo que, juntamente com a produção de hidrogênio verde (H2V) deverá enriquecer ainda mais a matriz energética do Brasil, conhecida e admirada mundialmente por dispor de uma diversidade muito positiva fontes renováveis. Eólica e solar já respondem por fatia considerável do atendimento da carga, aumentando progressivamente sua participação no SIN (Sistema Interligado Nacional).
De um lado, trata-se de um reforço bem-vindo, sem dúvida, mas que traz desafios inéditos ao ONS (Operador Nacional do Sistema) e ao balanceamento do SIN, que, além de energia, também demanda potência, principalmente em dias de calor extremo, com acionamento simultâneo de milhares de equipamentos de ar refrigerado. Ao longo do tempo, esse quesito vinha sendo perfeitamente atendido pelas usinas hidrelétricas, que ainda são a base principal da matriz nacional.
Mas o SIN vem sinalizando uma necessidade cada vez maior de reserva de capacidade que, em certas ocasiões, acaba sendo suprida por usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis. Isso encarece a produção de eletricidade e é ambientalmente negativo em tempos de adversidades climáticas.
Essa equação do despacho traz dilemas adicionais. As fontes renováveis são absorvidas automaticamente na programação porque não podem ter sua produção controlada. Isso faz com que o ONS acabe por abrir mão de geração hidrelétrica, mesmo em momentos em que seu uso é mais vantajoso em termos de custo.
Por outro lado, dar escoamento à oferta solar e eólica não tem sido tarefa simples. Por mais robusta e ramificada que seja, a rede nacional de transmissão apresenta gargalos na região Nordeste, justamente onde se concentram os maiores parques. Há situações em que a fluidez de energia precisa ser interrompida, ocasionando uma situação conhecida como “constrained-off”, com consequentes prejuízos aos empreendedores de usinas.
No verdadeiro jogo de xadrez em que consiste a atual gestão do cardápio nacional de fontes de grande porte, ainda falta mencionar a opção nuclear. As usinas Angra I e II tem prestado bons serviços ao SIN, por conta da estabilidade de funcionamento e por estarem presentes num centro de carga muito importante da região Sudeste.
A dúvida recai sobre a continuidade da construção de Angra III. O governo federal ainda não deixou em claro se vai ou não concluir esse ativo, decisão que também deve ser tomada neste ano. Do ponto de vista ambiental há resistência, assim como quanto ao seu custo de operação, considerado muito elevado.
GD em expansão plena
Já em nível de redes elétricas urbanas é a Geração Distribuída de menor porte, com sistemas fotovoltaicos, em verdadeira explosão de negócios, que coloca mais uma questão a ser resolvida adequadamente.
A cada consumidor que opta por investir em painéis e produz parte ou a totalidade da energia que consome, faz sobrar no portfólio da distribuidora à qual está conectado um montante comprado previamente pela companhia, nos leilões promovidos pelo governo federal.
A soma de toda a geração distribuída instalada nos centros urbanos, portanto, coloca desafios às concessionárias. Complica tanto o desenho futuro da malha de cada uma delas, como torna mais complexa a operação das redes em tempo real.
Investimentos em automação e inteligência de operação vem sendo feitos. Não ainda em escala desejável, até porque isso implica em maiores desembolsos que acabam impactando as tarifas. Ou, pior, podem não ser reconhecidos pela Aneel por conta das condições atuais da regulação para esse tipo de aporte.
A migração de consumidores para o mercado livre somada à geração distribuída põe em xeque o planejamento das empresas, como também seu equilíbrio econômico-financeiro no médio e longo prazo, à medida em que a abertura do mercado chegar à baixa tensão, permitindo a migração em massa, ainda que progressiva.
Se esse panorama se mostra incerto, as distribuidoras, no momento, atravessam também um momento sensível. Estão próximas de uma processo de renovação dos contratos de concessão cujas condições ainda precisam ser definidas pelo Ministério de Minas e Energia, em meio a uma alta insatisfação da população pelos serviços prestados.
Seja pela qualidade e continuidade do fornecimento, seja pelo comportamento das empresas frente aos eventos climáticos extremos.
Equipes insuficientes e redes vulneráveis demais tem acirrado os ânimos não só da população como no plano político. Parlamentares se mobilizam em vários níveis – câmaras municipais, assembleias legislativas e Congresso Nacional – para fiscalizar o segmento e propor medidas duras, tornando bastante hostil o ambiente político para a o processo de renovação.
As operações em distribuição do grupo Enel, assim como a Light e a Amazonas Energia, são exemplos de corporações que estão enfrentando dificuldades junto à Aneel, acumulando penalidades e descumprindo acordos de melhorias firmados junto ao órgão regulador. Entre estes, o caso mais grave é o da Amazonas Energia, cujo contrato, a depender agora do governo federal, pode caducar, exigindo a relicitação da concessão.
Todo o panorama desenhado até aqui aguarda providências que estão em elaboração em Brasília. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, vem anunciando em diversas ocasiões que medidas provisórias deverão trazer novidades. Tanto no campo tarifário, como também em nível de reforma do marco do setor elétrico.
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